12.7.07

Imperialismo

Uma das palavras mais utilizadas pela esquerda é “imperialismo”. No âmbito socialista, ela adquire diferentes significados, desde a construção de um império territorial – movimento levado a cabo em toda a História por grandes potências que reduziam os conquistados a colônias mais ou menos integradas politicamente ao centro dominante – até o simples investimento de empresas fora do país na qual possuem sua sede. Assim, o termo corresponde a coisas tão distintas quanto a conquista dos celtas pelos exércitos de César na Antiguidade, da Península Ibérica pelos mouros na expansão do Islam, dos astecas por Cortés na conquista da América, do Egito pela Inglaterra durante o neocolonialismo do século XIX, e até mesmo a abertura de um "McDonald’s" na França no século XX. Uma palavra tão ampla assim serve muito bem ao propósito publicitário de possuir um slogan repleto de fortes emoções e passível de ser utilizado conforme os objetivos políticos do momento.

Esta ambigüidade pode ser aferida com alguns exemplos. Se o conceito diz respeito à exportação de capital expressa em investimentos empresariais em outros países, até os regimes socialistas seriam aliados do “imperialismo internacional”. Tanto URSS, quanto China e regimes associados buscaram, em algum momento, estimular a produção de seus países e atrair – pasmem! – fábricas, empréstimos, investimentos de outras nações. Além disto, uma vez definido o conceito desta maneira, é facilmente demonstrável que o “imperialismo” é, antes de tudo, bem vindo.

O comércio entre os países, bem como a transferência de capitais de países desenvolvidos para os mais empobrecidos, são o verdadeiro esteio e fundamento da industrialização destes últimos. Não fosse a Volkswagen abrir uma plant um dia no Brasil – nos longínquos anos 1950 -, não teríamos capital e mão de obra qualificada o suficiente para fabricarmos hoje aviões, não estaríamos entre os países de maior economia do mundo, nem seríamos um dos maiores parques industriais. O mesmo pode ser dito de todos os NIC(novos paises industrializados), tais como a Coréia do Sul, e aqueles que um dia esperam se tornar um (como, quem diria, o Vietnam, país doido por bastante “imperialismo”, isto é, capitais e investimentos estrangeiros).

A utilização da palavra “Imperialismo” neste sentido economicista era bem típica da primeira metade do século XX, e foi ficando gradualmente defasada em relação à realidade global na medida em que aquelas décadas foram ficando para trás. Ela não pode ser utilizada para significar exatamente “comércio desigual”, já que mais de oitenta por cento das trocas entre os países desenvolvidos sempre se deram entre os mesmos. A briga dos países mais pobres era, e é, então, para participar mais deste comércio, e não menos. Se conceituar o slogan por este viés econômico não produz bons resultados para a esquerda, já que pode ser facilmente demonstrado que exportação de capitais e comércio entre países não é algo que seja maléfico – muito pelo contrário -, só resta aplicar a palavra em outro terreno.

Uma outra maneira é o viés político: Imperialismo seria antes de tudo a conquista territorial de um outro país, levado a frente por interesses mil, principalmente – como é típico em uma explicação socialista – econômicos. Foi neste sentido que Lênin o conceituou ao defini-lo como “a fase superior do capitalismo”, em meio à expansão colonialista levada a frente pelas principais potências européias na segunda metade do século XIX e que reduziu a quase totalidade de Ásia e África a colônias. Mas é óbvio que, se Imperialismo é isto, o culpado do mesmo não é o capitalismo, já que é facilmente demonstrável que:

1) Este tipo de invasão sempre ocorreu na História, em qualquer sistema de produção existente - inclusive o comunismo, como vou falar logo adiante - e não se pode afirmar a priori que ele seja sempre prejudicial;

2) O neocolonialismo do século XIX não tinha um caráter meramente econômico, já que muitas colônias não davam retorno nenhum – algumas eram pedaços de deserto ferozmente disputados -, pelo contrário, davam prejuízo;

3) Diferente do que Lênin dizia, o capitalismo sobreviveu muito bem sem este tipo de conquista, e a maior potência do século XX, os EUA, não se tornou um Império colonial como os europeus; pelo contrário, esteve no cerne da pressão pelo desmantelamento dos mesmos;

Ou seja, por mais que existissem também motivos econômicos para o neocolonialismo europeu do século XIX, ele não pode ser explicado apenas como conseqüência óbvia e exclusiva do capitalismo. A Inglaterra não se tornou menos industrial e seu mercado menos livre simplesmente porque abriu mão de suas colônias, e o capitalismo norte americano nunca precisou das mesmas. Pelo contrário, foi a partir da ascensão dos USA após a primeira guerra mundial que a era das colônias começou a acabar, pela defesa de Thomas Woodrow Wilson, presidente americano na segunda década do século passado, da autodeterminação dos povos, conceito que foi um dos pilares da fundação da Liga das Nações (protótipo da ONU) e serviu para remodelar o mapa europeu, tendo por objetivo colocar fim aos grandes impérios dinásticos ("as prisões dos povos", como eram chamados). A partir dali, o fim dos grandes impérios europeus soou, e eles se esvaneceram no mesmo passo da ascensão da hegemonia norte americana.

Mais interessante ainda é que, segundo esta definição, as maiores potências imperialistas do pós segunda guerra foram justamente as...socialistas! O último grande império colonial existente no mundo foi a União Soviética, que nada mais era do que um conjunto de quinze repúblicas dominadas pela Rússia, como nos velhos tempos do Czarismo. Ao mesmo tempo, os comunistas soviéticos mantinham o controle militar e político do Leste Europeu, enquanto acusavam os seus inimigos norte americanos de praticarem imperialismo por simplesmente abrirem fábricas em outros países, tirando empregos de seus cidadãos em prol dos de outras nações (não é preciso lembrar que uma vez terminada a segunda guerra, e a reconstrução dos países derrotados na mesma, as tropas norte americanas gradualmente voltaram para casa, muito diferente do que fez a União Soviética).

A coisa se torna mais cômica quando se sabe que o maior país socialista do mundo, a China – cuja única virtude atual é a economia, que já não pode ser descrita exatamente como socialista -, é uma potência imperialista que tiraniza o Tibet, tentando destruir à força sua cultura secular; e ameaça continuamente de invasão Taiwan, que só não acordou ainda com os exércitos do Dragão Vermelho na sua porta por causa do compromisso moral assumido pelos “imperialistas” norte americanos em defendê-los, compromisso mantido mesmo quando já não há mais nenhum interesse dos EUA em proteger a ilha, dado o fim da guerra fria. Portanto, quando a esquerda fala de imperialismo neste sentido deve-se tentar entender o que querem realmente dizer. Não pode ser a conquista territorial de outro país, a redução de outro país à colônia, já que simplesmente não há potências capitalistas fazendo isto – tomando-se por pressuposto que capitalismo pode ser tido como uma ideologia oposta àquela da esquerda, não vou entrar neste debate neste post, mas em um futuro; basta indica que é nisto que a militância socialista acredita, ou finge acreditar -, ao mesmo tempo que há todo um histórico de países socialistas comprometidos com suas incursões imperiais.

Resta o conceito mais comum, mais arraigado na militância socialista. Imperialismo seria sinônimo de intervenção norte americana. Claro que os intelectuais e líderes da produção acadêmica de esquerda não levam isto muito a sério, já que esta definição é totalmente ingênua, descontextualizada e baseada no desconhecimento do nascimento do chamado “império norte americano”. Mas ela é muito útil como slogan e propaganda, daí sua ampla utilização.

Basta analisá-la mais de perto para notar a contradição da idéia. Toda intervenção norte americana seria imperialista? A intervenção na primeira guerra mundial, apoiada pela esquerda internacional, seria imperialista? E a intervenção na segunda guerra, igualmente apoiada pela esquerda, também o seria? Teria sido imperialismo a intervenção dos EUA na Bósnia, para acabar com o genocídio promovido por Milosevic? Dificilmente algum esquerdista diria que sim, resguardando a palavra para aquelas situações onde a intervenção não fosse motivada por alguma forma de “humanitarismo”, mas sim associada a qualquer outro tipo de interesse. Mas ainda aqui a posição é indefensável. Em todas estas intervenções, os EUA foram movidos tanto por compromissos morais, quanto por interesses bem específicos. A existência de outros interesses por detrás de intervenções não nega nem a presença de sentimentos humanitários no empreendimento, como também nada fala sobre a necessidade ou não da mesma.

Se a simples existência de uma forma de interesse não humanitário tornasse dispensável uma intervenção, a operação cirúrgica que parou o genocídio nos Bálcãs e salvou centenas de milhares de vida, levando os dirigentes genocidas a julgamento internacional, não deveria ter ocorrido. Os USA aproveitaram a ocasião para estender a hegemonia militar da OTAN no leste europeu, para desagrado da União Européia e da Rússia. Bom para os EUA, melhor ainda para os centenas de milhares que sobreviveram e para a Justiça Internacional que teve uma oportunidade ímpar de se fazer valer. Afirmar que a operação não deveria ter ocorrido só para se colocar contra a hegemonia norte americana é uma total inversão de valores, uma justificação do genocídio em nome de uma antipatia qualquer por um país que, mal ou bem, estava agindo, exercendo sua superioridade bélica, para deter um morticínio totalmente ilegítimo.

A situação dos socialistas na questão se torna ainda mais complicada já que a era das intervenções globais norte americanas, a ascensão dos EUA à “polícia do mundo”, foi levada a cabo pela própria esquerda norte americana e apoiada pela maioria esmagadora da esquerda internacional. Embora fatos como este sejam pouco conhecidos de muitos (já que não constam nas cartilhas de propaganda a partir das quais a militância esquerdista acha que pode entender e, valha-nos Deus, transformar o mundo), não o são pelos próprios intelectuais líderes da esquerda. A sociedade norte americana, cujo conservadorismo é notório, sempre foi isolacionista em relação aos problemas europeus – o que significa ser alheia aos problemas mundiais. Um norte americano sabe muito pouco sobre o que ocorre fora de seu país – o que é fonte inesgotável de piadas sobre o provincianismo dos USA, sobre seu lado caipira. Os únicos temas internacionais com chances reais de repercutir na população norte americana são aqueles que se associam, de algum modo, a seus problemas internos. Por isto as poucas intervenções dos EUA fora de seu território antes da primeira guerra mundial, foram pontuais, e restritas ao pacífico e América Central, regiões com laços históricos com eles dada a contínua onda migratória que partia destas regiões rumo a América do Norte. Assim, o Commodoro Perry bombardeou o Japão em meados do século XIX, e os EUA entraram em guerra contra a Espanha em 1898 para ajudar a independência de Cuba, Filipinas e Porto Rico.

A própria onda de intervenções na América Central durante o final do século XIX, que gerou a famosa política do Big Stick, já ocorreu em um momento de crescimento da esquerda norte americana, através do progressive movement, que traz em seu próprio nome sua origem não conservadora, mas associada à ideologia do progresso. Este movimento misturava temas conservadores e social democratas em doses distintas, e começou a erodir o domínio que o Partido Republicano tinha na política americana desde sua vitória na Guerra de Secessão. Muitos de seus partidários eram políticos do próprio GOP (Great Old Party, como é conhecido o Partido Republicano) que, de uma forma de outra, iam se distanciando do mesmo a ponto de serem marcos na gestação de pelo menos dois novos sistema político partidários (o quarto sistema, marcado pela ascensão progressive, e o quinto, que se deu em torno do New Deal). Há vários temas que poderiam ser tratados aqui, mas basta dizer que é deste tempo o crescimento da população católica e o auge da imigração européia para os EUA, como também de sua ligação com demandas mais progressistas, a geração do nacionalismo norte americano, a busca pela criação de legislações trabalhistas e mecanismos welfare etc.

Mas o importante para este post é o crescimento de de princípios progressistas na população norte americana e entre os republicanos, e que levou a uma busca por inserir os EUA na política internacional. O primeiro sintoma disto foi a intervenção – olha a palavrinha aí – na primeira grande guerra, e a conseqüente atuação de Wilson para a construção de mecanismos internacionais capazes de gerir, por cima da soberania das nações (apesar de toda retórica dizendo que elas não estariam nem um pouco ameaçadas), os conflitos globais. Esta consequência imediata não foi bem vista pela mentalidade do povo, cujo cerne continou conservador, e o Congresso não permitiu a entrada do país na Liga das Nações, desmoralizando a mesma logo de cara. A década de 1920 nos EUA foi antiprogressive em toda linha, e se viveu o paradoxo de que a maior potência mundial simplesmente se recusava a exercer sua hegemonia, preferindo fechar tanto o seu mercado interno, quanto se eximir de questões globais. Eram os conservadores norte americanos que estavam por trás deste sonho da militância socialista.

Claro que algo assim não poderia dar certo, e este isolacionismo foi uma das causas determinantes tanto da crise econômico financeira inaugurada em 1929 quanto da ascensão se movimentos autoritários ao redor no mundo. Franklin Delano Roosevelt, eleito presidente em 1932 e saído das hostes dos progressives, foi o presidente que inaugurou a liberal era nos USA: a política norte americana seria dividida a partir dali entre aqueles que apoiavam e aqueles que eram contrários ao New Deal, e a esquerda dominaria a político em âmbito federal até o fim da década de 1960. Nos anos 1950, por exemplo, só os mais corajosos direitistas norte americanos tinham coragem de se dizer conservative, já que a propaganda democrata, que dominava os principais instrumentos de mídia então, tornou a palavra sinônimo de “insensibilidade social”.

A atuação de Roosevelt não foi apenas no sentido de construir uma economia mista e um welfare state, mas também de, finalmente, romper o isolacionismo de seu país. Ele foi mal-sucedido nisto durante toda a década de 1930, período no qual não só os republicanos eram avessos à idéia de envolvimento internacional, com também grande parte dos democratas. A segunda guerra mundial foi a grande oportunidade para mudar isto, e o fato de os EUA só entrarem na mesma após a um bombardeio no Pacífico é muito revelador – ainda mais quando se nota o fato de que o Congresso aprovou a declaração de guerra tão somente contra o Japão. De qualquer maneira, a era do internacionalismo americano é construída pela social democracia nos EUA, como também os instrumentos destinados a levá-la a frente, tais como a ONU, o Banco Mundial e o FMI. A própria retórica da Guerra Fria foi, dentre outras coisas, uma maneira encontrada de manter o país atuante na arena internacional, e o anticomunismo se associou perfeitamente a este empreendimento.

Não é à toa que o primeiro governo conservador dos EUA na era pós guerra fria, o de George Bush filho, recebeu, logo no seu início, a crítica maciça da esquerda internacional de ser “isolacionista”. Era o temor de que, sem o inimigo do comunismo, os norte americanos mais uma vez dessem as costas para o globo, levando a ONU e outras organizações nas quais se apóiam os movimentos de matiz socialista em todo o mundo, à completa irrelevância. As piadas que eram comuns no primeiro ano do mandato de Bush eram aquelas que o retratavam como um caipira que desconhecia completamente o que se passava ao redor do mundo. Logo após o 11 de setembro de 2001, uma das primeiras interpretações de um intelectual de esquerda a respeito do atentado, Francisco Carlos Teixeira, dizia que a culpa pelo mesmo era do novo isolacionismo norte americano, que os EUA não podiam deixar de atuar no mundo, que os conservadores ao redor de Bush estavam errados etc. Bem, os conservadores resolveram atuar no mundo após isto, só que não do jeito que os socialistas queriam, isto é, fortalecendo a ONU; mas utilizando a nova doutrina de “unilateralismo”, que afirmava, dentre outras coisas, que se a organização estivesse disposto a colaborar para combater o terrorismo internacional, ótimo; mas se não estivesse tudo bem: se agiria por cima dela, realizando acordos nação a nação, e não por meio dos organismos internacionais.

Toda esta disgressão serve para demonstrar que a palavra “imperialismo” na boca da esquerda se refere não a toda e qualquer intervenção norte americana, mas àquelas que não atendam aos seus interesses globalistas, de fortalecimento da ONU e dos movimentos sociais ligadas a esta instituição. E com isto contam com o apoio de movimentos políticos que, apesar de não serem ligados a esquerda, vêem uma oportunidade de, por meio da ONU, levarem adiante seus propósitos nacionais (como Chirac na França). Ser "anti imperialista", na verdade, é ser imperialista de um outro modo, é advogar uma intervenção associada ao ideário da esquerda, ou de modo mais amplo, progressista e, para realizá-la, instrumentalizar os USA, já que a ONU não tem tropas e não sustenta a si mesma. A demonstração cabal deste ponto é que o único movimento político que realmente defende a total retirada norte americana da arena internacional é a parte mais tradicionalista da direita norte americana, os paleoconservatives, que continuam advogando o retorno do país aos anos anteriores à década de 1930.

Uma vez que se retira a aura sentimentalóide com que a esquerda pretendeu envolver a palavra Imperialismo, para torná-la totalmente manipulável pela sua propaganda, o debate sobre as propostas reais por trás da mera estratégica ideológica pode seguir adiante de maneira objetiva. Até que ponto a concentração de poderes da ONU, por cima de toda e qualquer soberania nacional, é benéfica? Até onde este é o melhor caminho? A que interesses esta concentração de poderes serve? Qual o programa dos movimentos políticos que o apóiam? A resposta não pode ser, é claro, a la Heloísa Helena, a la adolescente universitário fantasiado de Che Guevara (“construir um mundo rosa, luminoso e justo”). É necessário ser mais preciso do que isto.

Texto de André Luiz "VBT" dos Reis.

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