19.9.07

O Evangelho Segundo São Dawkins

Dawkins está engajado até o último fio de cabelo na luta entre o Bem e o Mal.
Resta saber de qual lado ele está...


Do blog "O Franco Atirador" (recomendo veementemente uma leitura na postagem original e nos seus muitos comentários):

Crentes, tremei! Ateus e céticos do país, regozijai-vos! Acaba de chegar às livrarias brasileiras, pela Companhia das Letras, a principal arma de Richard Dawkins em sua santa cruzada contra as religiões: "Deus, um Delírio", livro cujo título já diz tudo sobre o tom panfletário, a postura de dono da verdade e o flagrante desrespeito por qualquer um que não compartilhe de suas crenças, qualidades que Dawkins já demonstrou sobejamente em suas muitas entrevistas e ensaios.

Não sendo nem crente nem ateu, a argumentação simplória dos céticos não me faz a menor mossa. Mas Dawkins é um espécime curioso, talhado sob medida para ilustrar como o fundamentalismo cientificista está mais próximo do fanatismo religioso do que seus valorosos defensores gostariam de pensar.


Areia do Saara – Como seus companheiros de trincheira costumam fazer, Dawkins reduz a religião ao fundamentalismo. A essência do comportamento religioso, de acordo com esse ponto-de-vista, não está em Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, Ibn Arabi ou Shânkara, eruditos que amparavam suas crenças religiosas em sólida base científica e filosófica, mas apenas nos homens-bomba de Osama bin Laden e no pentecostalismo grosseiro de Bush. A partir daí, fica fácil argumentar que a religião só trouxe prejuízo à humanidade. Como diria Charles Fort, com esse tipo de argumento, eu posso provar facilmente que você é feito de areia do Saara – basta desconsiderar tudo o que há em você e que não é areia do Saara.

Além disso, ao igualar religião e fanatismo, Dawkins mostra uma ignorância crassa sobre a história e o dinamismo dos grupos religiosos, uma ignorância ainda mais imperdoável se considerarmos a quantidade de dados sobre o assunto reunidas ao longo de todo o século XX pela antropologia, psicologia e até neurologia, e que estão à disposição de quem quiser se informar em qualquer livraria ou biblioteca. Mas é claro que Dawkins não quer se informar.


Os Demônios da Dúvida – O fato é que o autêntico espírito religioso não é fanático e que o fanatismo só surge quando o espírito religioso desvanece na entropia e na desagregação. Coube a Jung demonstrar – tomando como caso de estudo o seu próprio pai, um pastor luterano cuja adesão inflexível aos dogmas escondia profundos questionamentos que o corroíam por dentro – que o fanatismo, na verdade, é um mecanismo neurótico de defesa contra dúvidas inconscientes. O fanático não é aquele que acredita – em Deus, na Ciência, seja no que for – mas aquele que deixou de acreditar. O fanático duvida com tanta intensidade que não pode se dar ao luxo de admitir as próprias dúvidas e, assim, reprime-as no inconsciente. É para se proteger contra elas que ele constrói uma postura rígida. Por esse motivo, ataca com violência (verbal ou física) qualquer um que ouse questionar suas crenças – porque basta o menor questionamento para o edifício inteiro desmoronar.

No entanto, isso também vale para os devotos de São Dawkins. A veemência com que os autoproclamados céticos atacam os religiosos em nome do conhecimento científico, a virulência de sua defesa das verdades científicas, o sarcasmo ofensivo com que brindam qualquer outra crença é uma demonstração eloqüente de que, quanto mais os cientificistas defendem conscientemente que todas as respostas devem vir da ciência, mais eles duvidam inconscientemente de que a ciência possa ter todas as respostas. Um exemplo basta para demonstrar: de acordo com a resenha da revista "Época" desta semana, ao lado dos extremistas religiosos, a outra bête noire contra a qual São Dawkins se bate são os pastores que querem que o criacionismo seja ensinado nas escolas, sob o nome de "teoria do design inteligente", ao lado do evolucionismo. Os proponentes do design inteligente não defendem que a teoria da evolução seja banida do ensino, mas que seja apresentada como isso mesmo, uma teoria, e que se diga às crianças que existem outras teorias alternativas.

Ok, os mais radicais defendem, sim, que o evolucionismo seja substituído pelo relato bíblico da criação, mas nivelar todos os criacionistas por baixo e jogar todos no mesmo balaio é uma injustiça, que não faz jus à inteligência – sofisticada ou sofística, não importa – de boa parte dos adeptos do design inteligente.

O mais curioso é que a postura de Dawkins é idêntica, não à dos criacionistas mais moderados, mas precisamente à dos radicais. Da mesma forma que os extremistas gostariam de proibir o evolucionismo em sala de aula, Dawkins é contra o ensino religioso nas escolas. Quer que as crianças aprendam somente a teoria da evolução, não como a teoria razoável e bem-fundamentada que é, mas como um fato absoluto e indiscutível. Dawkins justifica essa atitude com um argumento paradoxalmente oblíquo. Segundo ele, se todas as evidências científicas forem mostradas com honestidade às crianças, elas terão condições de decidir por si mesmas se a Bíblia é literalmente verdadeira ou não.

Agora, me corrijam se eu estiver errado. Se o objetivo é deixar as pessoas decidirem por si mesmas qual é a alternativa correta, então todas as alternativas não teriam que ser apresentadas com isenção e imparcialidade? Apresentar o evolucionismo como um fato científico estabelecido e, ao mesmo tempo, impedir que os defensores do design inteligente tenham uma chance igual de expor seu ponto-de-vista não é uma maneira de manipular os alunos, direcionando-os para uma conclusão pró-evolucionista?

Não me entendam mal, eu não estou defendendo o criacionismo. Como qualquer pessoa sensata, acredito piamente na evolução das espécies e que, com a seleção natural, Darwin topou com um dos mecanismos mais importantes dessa evolução. Já não estou tão certo de que seja o único mecanismo. A teoria junguiana dos arquétipos e os atratores estranhos da matemática do caos (que alguns consideram duas maneiras diferentes de descrever a mesma coisa) apontam para a possibilidade de que existam padrões de auto-organização atuando sobre a evolução das espécies, ao lado e em conjunto com a seleção natural, e Marie-Louise von Franz já havia sugerido, numa nota ao capítulo que escreveu para O Homem e seus Símbolos, que o desenvolvimento das espécies pode ocorrer de forma sincronística. Mas é claro que arquétipos, atratores estranhos e efeitos sincronísticos não têm nada a ver com o Grande Arquiteto do Universo com que sonham os criacionistas.


O Deus de Dawkins. – Há um outro aspecto no raciocínio de Dawkins que chama a atenção. Vamos olhá-lo de novo, desta vez citando textualmente a matéria da Época: “Expostas a todas as evidências científicas, as crianças vão crescer e ter condições de decidir se a Bíblia é literalmente verdadeira ou se o movimento dos planetas influencia sua vida, afirma Dawkins”, aproveitando para alfinetar os astrólogos, outro grupo que os céticos amam odiar.

A visão cética, portanto, fica presa a uma alternativa binária: ou bem as narrativas religiosas são literalmente verdadeiras, ou bem elas são falsas; ou bem os planetas influenciam fisicamente a vida das pessoas, ou bem a astrologia é uma furada.

“A hipótese de Deus”, escreve Dawkins, “é que existe uma inteligência sobrenatural que deliberadamente projetou e criou o universo e tudo dentro dele, inclusive nós.” Essa hipótese não se sustenta porque, de acordo com ele, se Deus existisse, estaria sujeito às leis da evolução: “Inteligências criativas, sendo fruto da evolução, necessariamente chegam mais tarde ao universo, e por isso não podem ser responsáveis por projetá-lo.”

Mesmo se admitíssemos a idéia de um Deus criador, tal qual acreditam os evangélicos, o argumento de Dawkins é uma falácia, e um Santo Agostinho ou Santo Tomás de Aquino não teria a menor dificuldade em mostrar sua inconsistência: ele só seria válido se Deus fizesse parte do universo e, portanto, estivesse sujeito a suas leis; mas o conceito de uma divindade que criou o universo pressupõe, justamente, que Deus é anterior ao universo e, dessa forma, precede essas leis que, na verdade, segundo essa hipótese, teriam sido determinadas por ele. Se foi Deus quem determinou as leis naturais, as leis naturais não poderiam determinar Deus.

É por isso que os místicos de todas as religiões insistem na chamada teologia negativa, isto é, na compreensão de que aquilo que chamamos de Deus está além dos limites da razão, da linguagem e da percepção. Isto porque o que nós denominamos “Deus” é o fundamento último não só da realidade, mas também dos processos cognitivos que usamos para perceber e interpretar essa realidade. Dessa forma, ele é anterior a esses processos e, conseqüentemente, não é abrangido por eles.

É claro que um racionalista de boa cepa como Dawkins teria problemas em aceitar que exista um nível de realidade que está além das limitações da razão, até porque o racionalismo se apóia sobre o axioma de que a razão não tem limitações. Mas, como todos os axiomas, o primado da razão é indemonstrável e, assim, torna-se uma questão de fé, tanto quanto a confiança do fundamentalista na existência literal de um Papai do Céu. Afinal de contas, a singularidade inicial que deu origem ao universo, de acordo com a teoria do Big Bang, não é, por definição, um ponto onde as leis da física, tais como a conhecemos, deixam de ser aplicáveis e que, por isso, não pode ser adequadamente descrita nem pela linguagem, nem pela matemática, que se contenta em indicá-la com uma notação abstrata? Não é, pois, uma entidade tão impessoal e incompreensível quanto o Deus da teologia negativa, que tanto os fundamentalistas da religião quanto os da ciência são incapazes de compreender?